
Texto: Nô Mello
Fotos: Pedro Bucher
Edição de Moda: Juliana de Paiva
Beleza: Julio Cardim
Expoentes da arte contemporânea brasileira atual, os artistas cariocas Elian Almeida, 31 anos, e Panmela Castro, 43, conversam sobre suas trajetórias na arte e fora dela, traçando paralelos entre suas produções e encontrando pontos em comum e divergentes entre seus olhares e práticas pictóricas.
Panmela Castro: Eu e Elian nos encontramos na cronologia do tempo da arte brasileira. Pois, apesar da diferença de 13 anos entre mim e o Elian, o mercado de arte localizou a gente dentro do mesmo movimento de resgate dos artistas negros, periféricos.
Elian Almeida: A Panmela já tem uma caminhada de muito tempo. Tem aquela frase, "quanta gente teve que caminhar para a gente correr", né? Mas, querendo ou não, é interessante pautar esse momento da arte contemporânea brasileira, que consegue nos identificar em um mesmo lugar. Panmela, você consegue dizer se a gente está vivendo, de fato, um movimento?
Panmela: Sim. Você está com 30. Eu com 43. A gente está na mesma geração, não por questões de idade, mas por essa questão do movimento e do ponto em que os dois entram nesse cenário de arte contemporânea. A arte contemporânea se considera universal, né? Pensa que só ela existe nesse mundo e que os seus museus têm que cuidar daquele tipo de arte, excluindo todas as outras. Mas tem várias outras formas de trabalhar com arte. Isso dialoga muito com o nosso trabalho, que fala sobre racismo, preconceito. Justamente por eu ser uma mulher, negra, periférica, no espectro autista.
Elian: Existe uma barreira, uma aura que se cria em cima do trabalho das artes plásticas, que vai passando pelos agentes, galeristas, instituições e tudo mais, e cria uma maneira de legislar. Em códigos mesmo, em modus operandi. Várias pessoas que a gente conhece produzem, mas não adentram nesse circuito que é considerado esse maior. A gente está localizado nesse sistema maior, que vejo como uma pequena parte, porque no todo ainda não consigo vislumbrar pessoas pretas, artistas racializados, nesse lugar maior.
Panmela: É uma grande contradição dessa área que a gente trabalha, porque quem compra as obras são os colecionadores, que são pessoas muito ricas mesmo. E, ao mesmo tempo, por mais que a gente esteja circulando nesse meio, nunca vai ser aceito, porque a nossa criação é completamente diferente dessas pessoas, a forma de pensar e tudo mais. E eu, como artista, quando produzo a arte, não produzo para essas pessoas. Produzo para o público, mas a única forma do meu trabalho chegar a esse público é através do financiamento dessas pessoas. Por isso, nunca abandonei a performance. Quando eu estava fazendo meus grafites na cidade, via que me interessava mais pela minha relação com as pessoas, com a arquitetura, do que pela imagem que eu deixava. Então, vi que o meu trabalho, para além da ilustração na parede, era um trabalho performático. O trabalho que o Elian faz. é muito mais imaginativo. Ele pensa um futuro.
Elian: Nunca tinha parado para pensar o meu trabalho como uma projeção de um futuro, porque sempre pensei nele a partir da pesquisa e a pintura como uma coisa que sucede. Passo o tempo pesquisando, tentando articular, revisitando imagens de arquivo. Até mesmo por causa da minha formação na França, quando estudava mais por arquivos, me ajudou muito a organizar várias imagens. Sempre vi a minha pesquisa como uma arqueologia de uma memória histórica.
Panmela: Você cria a imagem, não uma coisa que aconteceu no passado. É a imagem que nunca existiu. Então, se ela não existe no passado nem no presente, é uma imagem do futuro.
Elian: O trabalho artístico tem esse movimento elástico, ao mesmo tempo estou sempre olhando para os fatos do passado. Estou projetando um futuro mesmo, de uma imagem, de um objeto que ainda não existe. E, aí, depois se torna uma outra coisa.
Vogue: Vocês também têm a experiência acadêmica, de ensinarem arte para as pessoas. Como isso integra o trabalho de vocês?
Elian: O tempo que eu passei como educador no Museu de Arte do Rio foi uma segunda faculdade. Existem vários códigos que faculdade nenhuma te coloca.
Panmela: Sou professora a minha vida toda, né? Comecei a dar aula de artes com 17 anos, um pouco antes de entrar para a Escola de Belas Artes. Dei aula em muitas escolas, muitos cursos. Só na Rede Nami foram mais de 200 mil pessoas que passaram por lá. Me considero uma artista com um trabalho político, mesmo quando é o trabalho mais bobo. E o trabalho educativo não é só produzir a arte, dar oficina, ser professora, mas responder a todos os 10 mil estudantes que mandam mensagens todos os dias, os professores que mandam fotos dos trabalhos que fizeram na escola. Me considero educadora pelo contexto do ativismo.
Vogue: E a pintura, o retrato, vocês sentiram que foi uma escolha ao longo do trajeto? Como vocês vivenciaram isso?
Elian: Meu primeiro contato foi pelo desenho. A minha irmã estudava moda, então tinha tudo em casa, foi muito intuitivo desenhar. Passar para a pintura também, logo em seguida. O retrato e a pintura se tornaram uma questão específica pelo fato de que eu questionava a falta de registros de parentes meus. Enquanto meus amigos na escola conseguiam traçar uma árvore genealógica e ter imagens do tataravô deles, nunca conheci imagens dos meus avós. Anos depois, comecei a demarcar esse lugar especificamente como uma questão racial, porque o direito ao retrato, ao registro, era uma questão de privilégio. A partir daí, veio a escolha de entrar no retrato e a olha de continuar no trabalho pictórico. É a linguagem que mais consigo trabalhar com excelência, desenvolver, pesquisar.
Panmela: Minha mãe me inscreveu no vestibular de pintura na UFRJ quando eu tinha 17 anos. Na minha casa, eu era considerada artista desde pequena. Eu não falava com os outros, não saía do lugar e ficava só desenhando. Aí, eles chegaram nessa ideia maravilhosa que era porque eu era artista. Na verdade, eu era uma criança autista. E, naquela época, meus pais, semianalfabetos, "ah, é artista". Então eles sempre me estimularam. Com 9 anos, fui fazer os primeiros cursos de desenho e pintura. Depois, quando fiz o mestrado na UERJ, em 2011, e me formei em 2013, estava interessada em performance. Ali saquei que meu trabalho não era pintura, era performance. Hoje me considero uma performer com ideias que dão em escultura, vídeo, fotografia, instalação e dá em pintura.
Elian: Para mim, é como se a pintura me convocasse o tempo inteiro. Pode até parecer meio romântico, mas, querendo ou não, volto e esbarro na pintura. Mesmo que vá pensar um filme, existe um objeto, uma pintura que vai ter que passar pelo filme.
Panmela: Fiz um videogame que vai até para uma outra exposição agora. E o Elian está nele.
Elian: É tipo um Street Fighter de artistas.
Panmela: Isso, chama Luta no Museu. Então tem o Parque Laje, tem o M.A.M e tem o MAR. E tem os artistas amigos meus como participantes. Cada artista tem um poder: a Vivian Caccuri, que trabalha com som, é uma coisa sonora. E o Elian, são revistas Vogue que ele arremessa contra o oponente.
Elian: Experiência única. A gente se vê em tanto lugar, mas personagem de videogame nunca tinha passado pela minha cabeça [risos).
Vogue: Os dois tiveram reconhecimento muito cedo em suas trajetórias. Como vocês lidam com o sucesso?
Panmela: Apesar de só ter entrado nesse mercado de arte contemporânea recentemente, sou conhecida como artista há muito tempo. Já fiz todos os programas mais importantes de sempre estive nos jornais, em matérias, com muita exposição, trabalhando com marcas. Mas, enquanto artista, tento fazer com que o foco fique sempre mais no trabalho de arte do que na minha imagem, porque o importante não é a minha pessoa. Tenho 43 anos, já trabalhei 30 anos com arte. E o fato de eu trabalhar em comunidade, tinha mais dificuldades do que hoje em dia. Muitas reflexões a se fazer ali. Arte não é profissão. Arte é arte. Mas quando a gente encara a arte como profissão e se aventura a fazer essa jornada, ela pode ser muito desigual e maltratar muito.
Elian: Acho que lidar com essa ideia do que é o sucesso tem muitas ramificações, muitas nuances. Você vai morar em Paris, começa a fazer exposições, começa a ganhar dinheiro com isso, isso se torna sua profissão, você tem uma demanda, você tem uma agenda. Mas para as pessoas do lugar de onde você saiu, isso é um marcador que ultrapassa muitas barreiras. Porque, por conta de todos os arquétipos de corpo que me identificam, as pessoas nunca vão me identificar como artista plástico. Uma vez, fui fazer o check-in em um hotel, e o cara me falou: "Pô, você é artista, deve ser dançarino". Todas as conformações de realidade não me conformaram para esse lugar especificamente. E um lugar que eu demarco. Depois, meu diálogo com a moda traz esse tipo de relação com o sucesso. Por fim, percebo que o trabalho é bem-sucedido pelo público que a gente consegue mobilizar.
Panmela: Ser reconhecida me deu o poder de dialogar com as pessoas. É uma forma de distribuir poder. Acredito muito nisso.
Elian: Nosso sucesso rompe com o que é completamente previsto dentro desse contrato racial que vivemos no Brasil. O sucesso é uma construção individual. O destaque é uma construção coletiva consciente e inconsciente.
Panmela: Na situação que a gente está hoje, de crise climática, de recursos, não dá para pensar só em representatividade. Tem muita discussão, por exemplo, em torno dessa questão da ostentação. A gente sabe que o povo continua na favela morrendo, e muitas pessoas são excluídas dos processos decisórios e das posições de poder. Penso o meu trabalho principalmente nesse lugar não só de referência, mas de mudança. As gerações anteriores a nós eram muito da crítica. Criticavam o capitalismo, isso, aquilo. Minha geração não pode ser mais uma geração da crítica. Tem que ser uma geração da mudança, da proposição de mudança, de gerar uma outra situação de mundo diferente da que a gente vive agora. Porque senão, depois, não vai ter mais mundo para ter referência.
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