
Ana Maria Gonçalves
"Ouvi de Dione Carlos uma das melhores definições de amor. Ela diz que o amor faz com que saiamos de nós. Ou seja: quem ama está sempre fora de si, irreconhecível, a fazer, pensar, falar e sentir coisas que o velho ser, o que antes vivia enclausurado, nunca seria capaz de. Ela também diz que quem ama sai de si exatamente para abrir espaço para o ser amado entrar.
Sendo assim, amar é o que nos capacita a encarar o medo, o desconhecido, a excitação de se abandonar à expedição criteriosa e curiosa do Outro, que circulará por nós como quem precisa ter a certeza de que valeu a pena ter também se abandonado para estar ali.
Apaixonar-se seria, então, um projeto de exploração e reconhecimento, porque nada fica exatamente às vistas. É preciso saber escutar. O mais importante de nós quase sempre está sedimentado em camadas e camadas e camadas e camadas do que, genericamente, podemos chamar de vida. Entra-se no Outro em busca de abrigo e resposta, e quase tudo está velado, escondido, camuflado, maquiado, traduzido, disfarçado, acovardado, intimidado. E o encontro só acontece porque é também um jogo de reconhecimento, porque nos abandonamos da mesma maneira. E é pelas similaridades que tudo começa, indicando os caminhos a ser seguidos até que os dois seres se achem compatíveis/confiáveis o suficiente para se aprofundar no mergulho dentro do Outro, ao mesmo tempo que se abrem à invasão. É nesse lugar, nesse encontro de duas vontades, na adrenalina despendida pelo encantamento com o desconhecido, que acontece a paixão. Já o amor é depois, é mais além: é quando já se avançou o suficiente para saber que quer continuar explorando e descobrindo onde é que aquilo vai dar. Ser pintada pela Panmela Castro provocou-me esse tipo de amor. Há um Outro, ou uma Outra dentro de si, sempre, que também se encoraja a sair e se mostrar, em raros momentos de afeto, beleza e arte.
Posei para a série "Vigília", de Panmela, que não apenas retrata pessoas, mas captura experiências compartilhadas. Cheguei ao ateliê do Rio de Janeiro à meia-noite, horário marcado por ela, e bebemos, comemos, conversamos, celebramos, trocamos confidências, demos risada e saímos de lá por volta das 5h da manhã, para um dia que amanhecia com o céu vestido de cor-de-rosa e laranja. Antes, Panmela havia feito com que eu saísse de mim, que desse espaço para ela entrar e me conhecer um pouco, e havia voltado para pintar o que tinha encontrado, aproveitando para me apresentar a um eu que eu não conhecia. Isso me lembra demais a definição que o roteirista, dramaturgo e diretor mexicano Guilhermo Arriaga tem de artista: alguém que entra o mais fundo em uma floresta, onde ninguém nunca esteve, encontra lá alguém que nunca ninguém conheceu, ouve dessa pessoa uma história desconhecida, e retorna para contar.
Panmela verbalizou essa história por meio da pintura. E essa percepção eu tive ampliada pela leitura recente do livro Listening to Images, da Tina Campt. Segundo ela, as imagens não são mudas; são apenas quietas. E o que é quieto não deve ser confundido com o que é silencioso, pois o quieto também se registra sonicamente, em um nível de intensidade que requer foco e atenção. Tina mostra-nos que ouvir imagens, e aqui me refiro a imagens de pessoas negras, como eu, abre novas possibilidades interpretativas sobre as nossas representações nos arquivos e nas coleções oficiais, geralmente feitas por pessoas brancas, salientando o exótico, o científico, o anormal, o esquisito. Ver-me e ouvir-me em uma imagem minha que eu não conhecia, pintada por uma mulher negra, provocou-me exatamente o que Tina disse que ouvir certas imagens provocaria: um rompimento com o olhar soberano dos regimes que tentaram nos categorizar, recusando o modelo de representação pictórica que a sujeição tende a produzir e reproduzir.
A minha imagem, captada por Panmela Castro, contou minha história enquanto vibrava em partículas que viajavam de um lado para o outro dentro de mim, em ondas sonoras moldadas pelo oco do abandono provocado pelo acréscimo de amor por mim mesma. Aconteceu comigo. Pode acontecer com você. Ouça só:"

Foto: Acervo Panmela Castro
Texto originalmente publicado no catálogo homônimo da exposição Um Defeito de Cor (SESC, 2024)
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Ana Maria Gonçalves nasceu em Ibiá (MG), em 1970, e trabalhou com publicidade até 2001. É autora de Um defeito de cor (Editora Record), obra ganhadora do Prêmio Casa de las Américas (Cuba, 2007). É roteirista (Rio Vermelho), dramaturga (Tchau, querida! e Pretoperitamar) e professora de Escrita Criativa. É cocuradora da exposição Um defeito de cor, montada inicialmente no Museu de Arte do Rio (MAR), em 2022, depois no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, em 2023/2024, seguida pelo Sesc Pinheiros, em São Paulo, em 2024, o mesmo ano em que o livro Um defeito de cor foi tema da Escola de Samba Portela. Mora em São Paulo, onde escreve para cinema, teatro e televisão.