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Do Jardim, Um Oceano

Ao chegar à Galeria Francisco Fino, em Lisboa, é possível ver logo na entrada um autorretrato, da artista carioca Panmela Castro. Nele alguns dos principais elementos formais do seu trabalho estão presentes: o escorrido que resulta das pinceladas rápidas que buscam captar o instante (uma tradição da pintura moderna impressionista), a habilidade em captar o ar que circunda a pessoa retratada.  As plantas, as luminárias, a atmosfera de um jardim. Um espaço que por si só, carrega uma série de camadas históricas que vão também tocar na tradição artística europeia do século XVIII e sua disputa entre a natureza como algo controlável pela ação humana ou então como o lugar do insubmisso. Não estamos em um jardim qualquer. Os pincéis, a paleta de cores, tudo nos faz entender que esse jardim é o lugar de processo e criação da artista. Panmela, em seu autorretrato, surge em posição ao mesmo tempo relaxada e absorta. Seus olhos miram um livro. Não qualquer livro! Em suas mãos, está o que seria um exemplar da obra definidora de Gayatri Spivak, que traz no título a pergunta retórica que conduziu grande parte dos pensadores interessados em fundar uma outra forma de compreensão do mundo: “Pode o subalterno falar?”. 

Surge outra pista que pode nos conduzir pela exposição. O jardim não está situado em um lugar neutro. A neutralidade não existe. E como tal, não é possível deixar de lado, o fato de que a série de pinturas, apresentadas na galeria, surgiu em um jardim lisboeta. Acima de tudo, em um jardim português. É em Portugal que a figura da artista empunha o livro de Spivak, e isso muda tudo: O que está em jogo quando a artista brasileira e negra Panmela Castro cruza o atlântico e resolve se encontrar com um conjunto de pessoas negras, brancas,  afro-asiáticas, asiáticas, pessoas cisgêneras, trans, não binárias, portugueses, africanos, migrantes,  e esse encontro se dá em Portugal? Pois é exatamente nesse momento que por entre as arquiteturas do jardim, se vê surgir um oceano. 

*

Sabemos todos que nos rastros do projeto colonial português, uma série de existências foram retiradas dos seus lugares de origem e carregadas à força para territórios dominados pela coroa; Terras em África foram retiradas de seus antigos donos para fazer desses pedaços de mundo, um lugar de domínio, extração de riquezas e mão de obra a serviço do império português.  O Oceano foi a estrada por onde Portugal planejou submeter parte do mundo. Mas lembremos também que toda a tentativa de submissão tem de lidar com o insubmisso, com aquilo que não se dobra. 

Aos poucos, o oceano Atlântico foi também virando um espaço que não mais se submetia apenas à ideia de fronteiras nacionais, estabelecidas por europeus que se queriam descobridores do que sempre esteve em seu lugar. Acima e abaixo da água, uma série de tradições foram criadas. E foi dessa maneira que um mundo de práticas, linguagens e culturas, foi se tramando por entre sussurros, trocas, estratégias de sobrevivência.  O Brasil, país de Panmela Castro, foi nesse fluxo deixando de ser a principal colônia portuguesa para se tornar o principal destino de homens e mulheres negras que fundaram o maior processo de deslocamento forçado já experienciado pela humanidade: a diáspora africana. 

Ora, como só poderia acontecer, essas vidas desviadas não ocuparam apenas o território dominado. Elas também refutaram o dominador, ameaçando-lhe a supremacia pelo interior de suas antigas cidades, ruas, casarios, jardins.  Portugal e a cidade de Lisboa foram vendo surgir gentes que escapavam dos seus padrões europeus e, com elas, vozes e saberes que foram relegados ao lugar da subalternidade. No entanto, os subalternos que chegaram (e seguem chegando) falam. E não apenas falam. Eles criam e recriam linguagens artísticas, modos de existir, formas de redesenhar a vida.

- Igor Simões (Curador) 

24050501 G Auto-retrato com Francisco Fino, da série Deriva Afetiva Lisboa-10.jpg

© 2035 por Ateliê Panmela Castro. 

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