Direito ao Afeto
Esta exposição começou a ser sonhada em um tempo em que o mundo estava suspenso. Durante a pandemia, entre incertezas e reclusões, nasceu a ideia de apresentar o trabalho de Panmela Castro em uma mostra que abordasse o afeto como gesto e como ruptura. A exposição foi pensada para acontecer no espaço do Jacarandá, na Villa Aymoré, no Catete — um lugar que, assim como esta proposta, resistiu ao tempo. O que era para ter acontecido antes, só agora se realiza. E talvez por isso mesmo, ela carrega em si a força de quem atravessou o adiamento sem perder o ímpeto de florescer.
O Jacarandá é, por si só, uma afirmação de permanência. Fundado em 2014, sob a liderança de Carlos Vergara, é uma iniciativa coletiva de artistas e amantes da arte, sem fins lucrativos ou comerciais. Desde então, tem mantido seu compromisso com a ampliação dos espaços da arte e do pensamento de forma independente, generosa e crítica. Receber Panmela aqui, agora, é uma celebração dessa resistência comum — da arte que insiste, da ideia que retorna, do afeto que se realiza no encontro.
Música sem letra
Expressar o sentimento sem palavras?
O que se move dentro quando não há referência escrita — e, por isso mesmo, não há
definição, não há limite?
Talvez seja preciso desaprender a nomear.
Não colocar.
Deixar o vento entrar.
Música sem letra é sopro.
É som que toca sem dizer.
É o intervalo entre uma nota e outra que sustenta o que sentimos sem precisar explicar.
E quem disse que o sentir precisa ser explicado?
O silêncio?
Não exatamente.
Talvez seja escuta.
Talvez seja pausa.
Talvez seja só a coragem de não preencher o espaço.
Música sem letra nos oferece outra forma de compreender:
O afeto existe.
Ele não é dito.
Mas se faz presente.
Como o gesto que não exige retorno.
Como o olhar que permanece mesmo depois de virar o rosto.
Não se trata de dizer, mas de sustentar.
Não se trata de definir, mas de deixar existir.
Música sem letra é linguagem do corpo e do tempo.
É onde o afeto respira.
Na obra de Panmela Castro, o afeto não é um gesto óbvio. Ele está longe de ser leve ou automático. Por isso, o afeto, aqui, se torna um campo de disputa. E também de construção.
Panmela parte de uma experiência simples: receber flores. Um gesto frequentemente associado à delicadeza, ao cuidado, ao romantismo. Mas ela não para aí. Responde a esse gesto com outro — pinta as flores. A pintura, nesse caso, não é só imagem ou tradução visual. É ação. É elaboração. É transformação de um símbolo em prática, de um oferecimento em escolha, de uma emoção em construção estética e política.
Nesta exposição, o gesto de pintar flores não representa uma idealização romântica do afeto, mas sua recodificação como possibilidade de cura, autonomia e reciprocidade. Ao pintar as flores que recebe, Panmela se recusa a apenas agradecer. Ela devolve. E, ao devolver, afirma. Afirma que o afeto não é um luxo: é um direito. E mais do que isso, é uma estratégia.
O afeto, em sua obra, é convocado como força que mobiliza estruturas e é base na organização da auto estima. Não é íntimo apenas — é público. É coletivo. E é político. Está no gesto de cuidar de si, mas também no gesto de sustentar outras, de olhar para as que vêm depois, de construir pontes onde antes só havia isolamento. O afeto, nessa dinâmica, se alia à construção de saúde e educação. Ele é força de base: um terreno sobre o qual se pode erguer autonomia, visão de futuro e transformação social.
A autoestima, aqui, não é vaidade: é fundação. É a sedimentação de um saber que nos foi negado — o de que podemos, sim, fazer, criar, liderar, ensinar, existir de forma plena. O afeto funda o possível. Funda a confiança. Funda a ação.
E, é nesse espírito que, como curadora, reivindico o gesto do afeto sem a obrigatoriedade da resposta. As flores que envio para Panmela não são pedidos, nem cobranças. São flores para que ela não se sinta obrigada a nada. Flores para que ela possa apenas receber, se quiser, no tempo em que quiser, com a liberdade de não retribuir. Porque o cuidado também é isso: oferecer sem exigir. Criar um espaço onde a presença possa florescer sem dever. Onde o afeto não se torne fardo, mas possibilidade.
Panmela nos lembra, com suas flores e suas tintas, que criar também é cuidar. E que cuidar, nas margens de uma sociedade excludente, é um ato revolucionário. Suas pinturas não são ornamentos. São respostas. São afirmações de presença. São sementes lançadas no tempo para florescerem em outras mãos, em outras vozes, em outros corpos que também escolheram — ou estão aprendendo a escolher — viver com afeto como verbo político.
- Keyna Eleison (Curadora)







